Bárbara S. de P. X Andy Warhol
(outro pequeno fragmento do meu Trabalho de Conclusão de Curso, para a Escola de Belas Artes da UFMG)

Annateresa Fabris descreve uma comparação feita por Jameson entre O grito de Munch e os retratos executados por Andy Warhol:

O grito é “uma expressão ortodoxa da grande temática moderna da alienação, da anomia, da solidão, da desagregação e do isolamento sociais”, enquanto os personagens do artista norte-americano são uma afirmação do sujeito fragmentado, aniquilado mesmo, encarnando uma categoria que Jameson denomina “declínio do afeto”, da qual resulta aquele predomínio da superfície, tão típico do universo pós-moderno. [1]

As mulheres pintadas a têmpera ovo são o oposto do que Andy Warhol faz quando repete a serigrafia de Marilyn Monroe, anulando seu gesto e autoria. Por isso, fazer da fotografia uma ferramenta da pintura, no lugar de encará-la como produto final. Seria o meu trabalho, então, um retorno ao grito? Não. Embora bem diferentes das Marilyn Monroes, essas mulheres são produto da mesma fragmentação do indivíduo, elas são a “repetição” de várias outras.
A despeito de qualquer reflexão que possam aparentar nada nos é dito sobre essas mulheres, sendo assim, ela não são nada mais que suas cascas, estão vazias. Mas não como as Marilyns de Warhol, que como ele mesmo explica:

(…) a arte pop despersonaliza, mas não torna ninguém anônimo: não há nada mais identificável do que Marilyn, a cadeira elétrica, um pneu ou um vestido, vistos pela arte pop; e, são apenas isso: imediata e perfeitamente identificáveis nos ensinam com sua presença que a identidade não é a pessoa: o mundo futuro corre o risco de ser um mundo de identidades (através da generalização mecânica dos fichários da polícia), mas não um mundo de pessoas. [2]

As mulheres de Bárbara, ao contrário, não são identificáveis, são pessoas, mas ainda sim fragmentadas. Não possuem o glamour, não são alvo de admiração. Ao desligar das TVs, quando o consumo e as celebridades se apagam com a tela, elas são o que resta.

Elas são aquilo que o espectador não quer viver, mas vive. Não são uma denúncia politicamente correta de uma dura realidade vivida pelos menos favorecidos ou por alguma minoria pela qual o senso comum cultua uma piedade anestésica: nelas, o observador encara sua própria miséria emocional, seu próprio vazio e anonimato.

A obra de Warhol nivela indivíduo e objeto de consumo. Ela é mais um reflexo do fenômeno do narcisismo apontado por Gilles Lipovetsky, que, segundo ele, teria sua origem no “desaparecimento do pai, devido à freqüência dos divórcios”, o que levaria a criança a ver na mãe a imagem de castradora do pai. A criança, então, alimenta o sonho de substituir o pai, “de ser o falo, ganhando celebridade ou se juntando aos que representam sucesso.”

Comparando as abordagens dos trabalhos, nos deparamos novamente com uma proposta oposta à de Warhol. Meu trabalho representa o outro lado, a realidade banal do rebanho, o dia-a-dia fora do sonho. Nada aqui é sacralizado pela arte ou glorificado.

[1] CHALUB, Samira. Pós-moderno &: semiótica, cultura, psicanálise, literatura, artes plásticas. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1994. p. 109.

[2] CHALUB, Samira. Pós-moderno &: semiótica, cultura, psicanálise, literatura, artes plásticas. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1994. p. 109.




Sobre a série de nus femininos
(série disponível para visualização no site, link no logotipo acima)

O processo

O trabalho vem sendo desenvolvido há aproximadamente 2 anos e, desde então, o que inicialmente seria uma série temática se transformou em uma busca artística e pessoal por linguagem, estilo e identidade visual.

A técnica se definiu logo no início, sendo a têmpera ovo a escolhida. Essa escolha se deu, a princípio, devido a dois de seus aspectos principais: o tempo de secagem – menor que o da tinta à óleo e maior que o da tinta acrílica – e a possibilidade de um controle, através de variações em de sua fórmula, de sua textura. A fórmula usada na têmpera de fato se modificou bastante durante todo o processo de pesquisa, principalmente a partir do momento em que houve uma necessidade de uma construção mais pictórica, valorizando massas.

A possibilidade de seu manuseio direto, permitindo dessa forma – devido ao seu baixo teor tóxico – que se pinte com as mãos, também foi um dos principais atrativos oferecidos pela têmpera ovo. Após alguns estudos e obras, quando se tornou possível uma análise mais conceitual da então série, ocorreu uma ligação nesse aspecto entre o material usado – o ovo – e os temas abordados na própria pintura.

A ligação entre o tema e o material foi além da tinta e, em determinado momento, também o suporte passou a integrar conceitualmente o conjunto que forma a obra-pintura. Papelão, jornal amassado e fita adesiva se tornaram, enquanto suporte, também elemento de expressividade, dialogando com os temas propostos enquanto desafiam o paradigma da atemporalidade da obra.

Mais tarde, o aspecto técnico do processo de criação novamente interfere imediatamente no tema, quando os suportes passam a ganhar dimensões cada vez maiores e, por fim, quando a fotografia digital passa a ser modelo para as pinturas, modificando-as em termos figurativos e cromáticos.

Embora todas essas mudanças tenham ocorrido o longo de 2 anos, nota-se uma unidade formada não só pelo tema do nu feminino, mas também por reflexões existenciais inerentes à imagem das mulheres inseridas nos ambientes e condições retratadas.


O suporte

Durante o processo, a tela foi rapidamente substituída por outros materiais. O primeiro foi o jornal, antes apenas uma folha, depois os suportes cresceram e as folhas de jornal passaram a ser emendadas, após muitos testes, com fita dupla-face. A descoberta desse suporte foi registrada no caderno de anotações pessoais, de onde foi retirado o trecho transcrito abaixo:

A primeira vantagem do jornal é que ele não me intimida. A tela é algo mais sério, custa algum (mesmo que pouco) dinheiro, sempre tomo mais cuidado com a tela não sei bem por que; então acabo não me soltando muito como faço com o jornal (se eu não gostar, é só embolar e jogar fora).
Outra coisa é que a tela possui certa “dignidade” que não condiz com o clima dos meus temas, eu nunca exporia, por exemplo, uma das pinturas dessa série em uma moldura. Eu as imagino abandonadas, como muitas das personagens nelas retratadas, pregadas na parede quem sabe até com fita crepe. Por isso não me importo (e até gosto) com eventuais danos nas bordas da folha.
Meus temas falam da solidão dos grandes centros urbanos, e o jornal também dialoga com isso. Ele é algo assim, do mundo, da cidade, me remete a paisagens urbanas de quadrinhos onde há sempre uma folha de jornal ao vento, se misturando à sujeira das ruas da cidade.

O “crescimento” dos suportes atinge o ponto atual quando grandes folhas de papelão, utilizadas para embalar guarda-roupas, são apropriadas, dando início a uma nova fase. Esses suportes são originalmente retangulares, mas após seu uso apresentam rasgos e irregularidades que são preservadas, visando a identificação do suporte por baixo da pintura: o papelão usado deve parecer papelão usado. Pelo mesmo motivo, irregularidades no jornal e pequenas áreas em que aparece a impressão do jornal não são disfarçadas.

Tanto no caso dos papelões quanto dos jornais, os cuidados com sua conservação, intencionalmente mínimos, são praticamente os mesmos: a parte de trás do suporte é reforçada com fita adesiva marrom (dessas utilizadas em mudanças). Dessa mesma forma, rasgos maiores também são emendados, mas não necessariamente disfarçados. Uma camada de tinta látex é aplicada, mas não em toda a superfície, que nunca é coberta totalmente pela pintura, preservando um aspecto de recorte de imagem dentro de um recorte de folha.


Os cenários

A prevalência quase absoluta de interiores é fruto de uma subjetividade que se encontra de forma marcante em todos os ambientes retratados. Mais do que refletir uma subjetividade da artista, o cenário é o elemento através do qual o espectador reconhece sua própria subjetividade. A familiaridade dos cômodos – quartos, banheiros, cozinhas ordinárias – o transportam para sua própria vida, vivida entre as paredes brancas de seu cotidiano. Através desse recurso, a pretensão é que a obra incite a auto-consciência.

A partir do momento em que a construção das imagens passou a ser baseada diretamente na fotografia digital, o cinza (que foi, durante algum tempo, a principal característica dos cenários) foi substituído por uma iluminação clara. Essa claridade artificial reforça a participação direta e ativa do ambiente: a luz age diretamente sobre o corpo, a sua artificialidade evidente traz a tona aspectos subjetivos já antes explorados nos temas (o urbano, o vazio, etc).

Nesse campo, o cinza perde por ser previsível. Qual a novidade em se relacionar o cinza com a cidade? A sutileza da luz artificial (sutil, porém marcante) é por si só a referência do ambiente fechado, da clausura. Ela é o código através do qual o espectador reconhece a realidade entre quatro paredes cotidiana em que vive. A claustrofobia mais uma vez se faz presente.
A contemporaneidade do tema também é reconhecida através desses cenários e, mais uma vez, temos o espectador inserido, através da imagem, na consciência de sua situação: esse é mundo, seu tempo, sua vivência diária.

A cidade, embora quase nunca apareça, também é um personagem. No caso dos interiores, o próprio visual das mulheres denuncia que não se tratam de pessoas que vivem no campo e, em alguns casos, temos janelas, também tão atuantes quanto as mulheres. Nelas, essas figuras contemplam o mundo fora de seu cubículo, esse contraste, onde se identifica um horizonte que se expande do lado de fora, acentua a claustrofobia do ambiente interior. Tomamos consciência da “caixa” que abriga um alguém.


O nu

Nudez e intimidade, duas idéias já tão interligadas, são ainda mais reforçadas. As personagens são flagradas em atitudes cotidianas e sua naturalidade e deselegância denunciam sua solidão, pois a nudez despida de atrativos não é condenável quando não há observador. O espectador da pintura não interage diretamente com a figura, ele é um voyeur e, do lado de fora, assim como a figura, está só e isolado nessa relação.

Sem a consciência de estarem sendo observadas e despidas de suas identidades, pois não apresentam roupas nem rostos que as identifiquem, essas mulheres têm em seus corpos a expressão de sua vulnerabilidade. Não há máscaras ou papéis.
Também em seus corpos reconhecemos sinais de nosso tempo: embora desnudas, ostentam tatuagens, cabelos tingidos, resquícios da “artificialidade” mundana. Suas atitudes também refletem o mundano, muitas das mulheres são retratadas fumando ou em momentos de total embriaguez, bebendo sozinhas em casa ou mesmo vomitando no banheiro.

As modelos são necessárias, pois elas fornecem detalhes e características de um indivíduo real, aspectos que uma figura inventada não possui. Esse toque de realidade é outro recurso utilizado para reforçar a identificação entre os espectador e a imagem. Ao se deparar com “uma pessoa de verdade”, o observador se vê.

A escolha das modelos, embora não tenha parâmetros definidos, segue certa tendência. Além de uma certa ligação pessoal entre a modelo e eu, os aspectos contemporâneos descritos acima são o alvo principal das reflexões propostas e, por isso, as modelos escolhidas têm com eles alguma relação. Mesmo que a obra não ofereça diretamente informações sobre as mesmas, espera-se que essas características se manifestem de alguma forma na imagem da pintura.
A fotografia é importante no processo da pintura é um facilitador da relação artista-modelo, pela mera praticidade de não exigir muito tempo da modelo e me permitir trabalhar e elaborar sua imagem pelo tempo que sentir necessário.

Algumas ponderações mais pessoais se fazem necessárias: a escolha pelo nu, especificamente pelo nu feminino com certeza caberia dentro de análises psicanalíticas que não pretendo levantar. Minha intenção não é produzir uma arte auto-biográfica, nem tampouco (no caso dessa série de pinturas) militante. Embora eu também não alimente a ingenuidade de acreditar que traços da minha personalidade e preferências não se manifestam inconscientemente a cada escolha na minha produção. Meus nus não são sexuais na medida em que um corpo nu consegue não ser sexual.







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